GÊNIOS DA ÉTICA E DO MAL-HUMOR


Data da impressão: 17 de março de 2010

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OPINIãO
Gênios da ética e do mal-humor
Derval Dasilio

Freud teve uma vida precária: família grande e sem recursos para manter-se sem provações. Pai falido (e que morreu prematuramente), necessidades familiares a serem atendidas, mas sua contribuição à humanidade foi inegavelmente extraordinária. O século 20 o homenageou tornando-o um ícone da psicanálise, ciência que ajudou a criar. Reconheceu-o como analista perfeito do mal-estar existente na cultura e na vida comum das pessoas, em razão de fatores incontroláveis que alcançam a sociedade e a pessoa. Contudo dele também se diz que foi um pai omisso, um brigão capaz de romper amizades com cooperadores e pesquisadores que o contradiziam.

Carl Jung, outro gênio, (teria sido neto de Goethe; quem não leu o “Fausto” jamais conhecerá as origens da expressão “vender a alma ao diabo”) dizia: “Por seu temperamento, Freud era considerado ‘persona non grata’ no meio universitário; tive que afastar-me dele, para ter meu trabalho reconhecido”. Freud, porém, considerava-o como filho!

Mal humorado, irritava-se com a crítica de outros cientistas do comportamento. Ninguém foi tão profundo na sondagem dos distúrbios mentais do ser humano. Não fora ele, não aconteceria o reconhecimento de que somos governados por gigantes interiores, como o “inconsciente” voraz, uma fome interior insaciável; o desejo sexual reprimido; o medo de viver; o ódio à oposição; a agressividade cega diante de obstáculos reais ou fictícios; a paixão desenfreada em várias expressões degradantes.

O gênio que fez e ainda faz a felicidade de muitos desvenda nosso egocentrismo, essa tendência de submeter o mundo ao nosso jeito, colocando as pessoas como nossos serviçais a qualquer custo. Freud descreveu também outro gigante interior que vigia nosso comportamento dia e noite: o superego! Essa força nos obriga a respeitar valores éticos, criar novas metas para a mente humana, novos rumos, outras estrelas-guias que orientem a caminhada da humanidade. Claro, com moralidade. A ética nos ensina a alcançar ideais (enquanto educa para bem-viver) e a respeitar as diferenças de cada um, sejam culturais, raciais, ideológicas, religiosas, por exemplo.

Freud desvendou um mistério guardado: a pessoa humana é um universo, no interior e no exterior de si mesma. Como disse Willian Blake, “um mundo num grão de areia”. Ou “uma gota d’água na pétala de uma flor”(Rubem Alves). Há em cada um de nós um depósito imensurável de impressões que não conseguimos externar inteiramente, e somente pelo uso da razão, da inteligência, pode-se avaliar esse tesouro. Mas esse depósito pode ser também lixo apodrecido e enterrado, ou um vulcão inativo pronto a irromper no mundo superficial da pessoa.

Freud sofreu muito. O pai morreu quando ele era criança. Suas irmãs sucumbiram nos campos de concentração vítimas do autoritarismo político nazista, determinado em extinguir por inteiro uma raça que sobrevivia milagrosamente através dos séculos. Ele desistiu de lutar, enquanto doente terminal de uma enfermidade incurável. No entanto seu legado à humanidade constitui-se numa riqueza sem preço, embora construída com extremo mal-humor.

A fé cristã precisa de Freud, um ateu confesso. Ele nos sugere que, primeiro, somente quando nos preocupamos com a sorte uns dos outros é que encontramos nossa verdadeira humanidade. Somente quando reduzimos o uso da razão ao seu papel de facilitadora da vida é que temos a vista desanuviada para ver o que é realmente o ser humano e seu interior.

Nada disso, porém, elimina os riscos de adversidades na vida. Nosso contexto natural contém forças incontroláveis, como Freud denunciou. Dependemos das atitudes mútuas uns dos outros, o que dá ocasião a inevitáveis contrariedades. Paciência no sofrimento, disposição para carregar os fardos uns dos outros e aceitação das contingências inerentes à existência são marcas de maturidade daquele caminhante que sabe que o caminho da vida é o “caminho da cruz”. Não custa ler Freud para entendermos que, além de sermos “inimigos” de Deus, precisamos reconhecer que, em primeiro lugar, necessitamos ser salvos de nós mesmos enquanto abrigamos e acariciamos restos apodrecidos, sinais de preconceito, ira, ódio, e desprezo pelo semelhante.

• Derval Dasilio é pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil

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Leia o livro
Cartas Entre Freud e Pfister, Sigmund Freud e Oscar Pfister
Deus em Questão, Armand M. Nicholi, Jr.


Sobre Derval Dasilio

professor teólogo filósofo
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9 respostas a GÊNIOS DA ÉTICA E DO MAL-HUMOR

    • DERVAL DASILIO diz:

      Para quem queira, sermão pregado em
      Maruípe no último domingo:
      JESUS COMPLICA AS COISAS…
      (Por Derval Dasilio)
      “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”; “Vós sois a luz do mundo”; “Sois o sal da terra”

      Os ditos de Jesus detonam muitas das coisas que consideramos banais em nossa vida. Palavras que expandem a consciência, alargando sentidos, transformando o senso comum em compreensão íntima de coisas que achamos não mais precisarmos de pensar sobre elas. Incomodam. Mas Jesus é o cara! Hoje, meditamos pouco sobre as caracterizações de Jesus, segundo o Evangelho: como é a nossa experiência de Deus num mundo onde o amor se torna uma idéia discutida de modo rasteiro na novela das oito? Como ter consciência da Luz divina que deve brilhar em cada um, quando mal notamos a passagem do dia para a noite, acendendo milhares de lâmpadas elétricas, gastando milhões de kws, dos quais nem nos damos conta, a não ser quando pagamos o talão no fim do mês? Como falar do sal e sua importância, se ele é um dos produtos mais fáceis nas gôndolas do supermercado?

      Amor em gestos concretos: amor com os que têm fome, que vivem na miséria, no abandono, são coisas a serem consideradas, do ponto de vista do amor. Por que será que Jesus, diante da realidade da pobreza, da miséria, da exploração do pobre, mesmo quando levanta sua ira no pátio-mercado do Templo, demonstrava ter paz consigo mesmo? O amor, na vida diária, enfrenta situações variadas que o contradizem.

      Mal humorado, Freud, um dos criadores da psicanálise, irritava-se com a crítica que sofria. Ninguém foi tão profundo na sondagem dos distúrbios mentais do ser humano. Não fora ele, não aconteceria o reconhecimento de que somos governados por gigantes interiores, um “inconsciente” voraz, uma fome interior insaciável; desejo sexual reprimido; agressividade cega diante de obstáculos reais ou fictícios; paixão desenfreada em várias expressões degradantes. Temos monstros ativos dentro de nós: ira, ódio, medo da vida, preconceitos raciais e sociais. Freud deixou de lado o amor, em favor da indignação? Conta-se que morreu em amargura, que foi um pai omisso, que perdeu três irmãs nos campos de concentração nazistas. Teve razões de sobra para o mal-humor.

      Jesus, porém, não demonstrava desconhecer esses sintomas. Membro de um povo oprimido politicamente por séculos, perdeu amigos como João Batista, decapitado pelo poder político. Amava as pessoas como elas eram. Doentes, deficientes, prostitutas, homens proscritos e detestáveis, fiscais corruptos, conheciam a experiência profunda de serem amadas por Deus. Governantes, militares, cobradores de impostos, mendigos, não importa. Quando ouvimos o imperativo de Jesus: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Cai por terra qualquer ideia de que não podemos ser amados por Deus, a não ser cumprindo certas normas religiosas, e mesmo éticas. Toda a vida de Jesus é expressão do amor incondicional. O amor genuíno é sempre incondicional. Será que aprendemos?

      • Anónimo diz:

        Tanta eletricidade, luzes eletrônicas, edifícios e pontes iluminados, no entanto vivemos em grande escuridão. Tempos obscuros. O interior profundo das pessoas é como uma noite sombria. Uma feliz expressão de Paulo, sobre o “homem interior” e o “homem exterior”, nos ajuda a compreender-nos e como é preciso luz para iluminar nosso interior. G.Carvalho escreveu: “Essa é, sem dúvida, uma boa imagem da coisa toda, tenho um eu ‘dentro’ e um eu ‘fora’; uma ’superfície’ e uma ‘profundidade’. Na profundidade está o meu centro. Na superfície, torna-se patente o quê eu sou”. Paulo não inventou isso; a ideia é mais antiga, na Bíblia Hebraica: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4,23). Na ideia bíblica, o homem e a mulher têm um centro: um “eu profundo” no qual tudo o que ele é está concentrado. Nosso “eu” é o corpo e a alma inteiros, entrelaçados. É com esse ser interior iluminado que refletimos a luz de Deus: “sois a luz do mundo”.

        Quantas vezes nos esquecemos que representamos para o outro o que Jesus representa para nós. Agarrados ao dinheiro, perseguindo colocações e empregos rendosos, uma carreira profissional, vidrados numa meta de vida confortável, não nos damos conta de que somos tempero do mundo. Aqui é nossa casa, e nela a cozinha é obrigatória. É aqui que se fazem almoços, banquetes, e temos escolher o que vamos comer e compartilhar com os outros, seja um churrasco, feijão tropeiro com torresmo e banana da terra cozida. Tudo isso precisa de tempero. Nem pouco nem muito. O prazer da convivência e da partilha é impossível de ser construído sem sal, sem gestos banais: bom-dia! Que calorão, hein! Até o almoço trivial, arroz-com-feijão, precisa do tempero da acolhida do outro.

        É obrigatório citar a receita: foi dona Altina quem deu… O bom tratamento inclui sempre a casa limpa, a mesa posta, pratos adequados, talheres e copos limpinhos, brilhando. E para completar o tempero da reunião, os donos da casa recebem os convivas com bebidas e sorrisos. No Brasil, uma festa cria laços entre as pessoas, implica em reciprocidade, cordialidade, prazer em receber, poder oferecer. Compartilhar uma refeição é abrir-se para uma infinidade de gestos amigáveis correspondidos regularmente. Talvez devamos compreender que, numa sociedade cada vez mais individualista, não é disputando um lugar, brigando e zelando pelo reconhecimento público, que seremos sal da terra. Não somos destemperados guardiões da moral, por outro lado.

        Precisamos descobrir o que significa mostrar a vida fundada em Deus, ser apegado a Deus. Quando nos identificamos com o egoísmo, moralismo, individualismo, somos destemperados. Transcender a tudo isso é oferecer-se ao outro. É ter compaixão, solidariedade, cuidado, atenção. Acolher e receber o outro para Cristo no banquete da vida. Vamos louvar, elogiar o Senhor, com sabor, com tempero, com gosto de sal. Ele rega os montes desde as suas câmaras; a terra farta-se do fruto das suas obras. Faz crescer a erva para o gado, e a verdura para o serviço do homem, para fazer sair da terra o pão. E o vinho que alegra o coração do homem, e o azeite que faz reluzir o seu rosto, e o pão que fortalece o coração do homem (Sl 104).

  1. adenir diz:

    Ótimas reflexões freudianas e do evangelho.O meio de comunicaçao é extensão do sistema nervoso e é o sistema nervoso através dos sentidos que nos liga ao meio ambiente e ao meio de comunicação pela visão, tato, olfato,gustação,audição,locomoção e sensorial. Os olhos são as lâmpadas do corpo. O nervo ótico seria esta fiação elétrica que através dos neurônios clareiam e energizam o corpo. Somos terrenos e universais dentro deste processo cósmico de amorização e cristificação que farão a segunda revolução da descoberta do fogo cósmico…parabéns ao estudioso e pesquisador pastor Derwal.

  2. Derval,
    gostei. Já de há muito que não leio algo, partindo de um evangélico que diz que Freud fez e faz bem paz o Povo de Deus. Muito interessante. Como Junguiano de carteirinha, discordo muito de Freud, mas ele deu a cara pra bater e ai começou o movimento terapeutico que temos até hoje, infelizmente com altos e baixos, pois há um grupo denominado novos freudianos que querem ser mais Freud do que ele mesmo, dizeno coisas que com certeza ele não disse, como os novos pentecostais que colocam na boca de Jesus, coisas que jamais ele haveria de dizer. Mas faz parte. Parabens pelo artigo. Valeu!

    • Derval diz:

      Lysias:
      Legal, seu comentário.
      Achei que merecemos dar atenção ao essencial de Freud,
      como você constatou. As “doenças” do espírito, patologias, etc..
      Ainda bem que você entendeu. Quanto a Jung, pra mim é o supra-sumo da psicologia (falo como observador, não como terapeuta — seu caso).
      A abrangência de suas observações, em termos de “humanidade” e “universo” são encantadoras: inconsciente coletivo… atavismos… arquétipos ancestrais… símbolos… religiosidade e sobrenaturalismo…
      são temas de importância maior,
      creio também. A “desindividualização” da pessoa, devolvendo-a à história comum da humanidade
      toda, parece-me imprescindível. Estou lendo novamente sua autobiografia e outros escritos,
      livro que acompanho há muitos anos.

      A propósito, você tem lido Zygmunt Bauman? Comecei com o Vida Líquida (a Zahar publicou
      uns 10 títulos desse comportamentalista analista da “pós-modernidade”, e vou adiante,
      por causa de assuntos como “O indivíduo sitiado”, por exemplo). Outro que me agrada muito
      é Gilles Lipovetsky, filósofo que recusa o conceito pós-modernidade aplicado a tudo que
      acontece na sociedade pós-industrial, e acentua um conceito próprio de “hipermodernidade”.
      Bem, “A Era do Vazio” (Manole), ou “ensaios sobre o individualismo
      contemporâneo”, é uma beleza!
      Obrigado, mais uma vez.

    • Derval Dasilio diz:

      Derval, gostei. Já de há muito que não leio algo, partindo de um evangélico que diz que Freud fez e faz bem paz o Povo de Deus. Muito interessante. Como Junguiano de carteirinha, discordo muito de Freud, mas ele deu a cara pra bater e ai começou o movimento terapeutico que temos até hoje, infelizmente com altos e baixos, pois há um grupo denominado novos freudianos que querem ser mais Freud do que ele mesmo, dizeno coisas que com certeza ele não disse, como os novos pentecostais que colocam na boca de Jesus, coisas que jamais ele haveria de dizer. Mas faz parte. Parabens pelo artigo. Valeu!

      Comentário por Lysias Garcia da Costa Junior — 02/02/2010 @ 0:00p02 | Responder

      a.. Lysias: Legal, seu comentário. Achei que merecemos dar atenção ao essencial de Freud, como você constatou. As “doenças” do espírito, patologias, etc.. Ainda bem que você entendeu. Quanto a Jung, pra mim é o supra-sumo da psicologia (falo como observador, não como terapeuta — seu caso). A abrangência de suas observações, em termos de “humanidade” e “universo” são encantadoras: inconsciente coletivo… atavismos… arquétipos ancestrais… símbolos… religiosidade e sobrenaturalismo… são temas de importância maior, creio também. A “desindividualização” da pessoa, devolvendo-a à história comum da humanidade toda, parece-me imprescindível. Estou lendo novamente sua autobiografia e outros escritos, livro que acompanho há muitos anos.

      A propósito, você tem lido Zygmunt Bauman? Comecei com o Vida Líquida (a Zahar publicou uns 10 títulos desse comportamentalista analista da “pós-modernidade”, e vou adiante, por causa de assuntos como “O indivíduo sitiado”, por exemplo). Outro que me agrada muito é Gilles Lipovetsky, filósofo que recusa o conceito pós-modernidade aplicado a tudo que acontece na sociedade pós-industrial, e acentua um conceito próprio de “hipermodernidade”. Bem, “A Era do Vazio” (Manole), ou “ensaios sobre o individualismo contemporâneo”, é uma beleza! Obrigado, mais uma vez.

      Comentário por Derval — 03/02/2010 @ 0:00p02 | Responder

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